domingo, 21 de agosto de 2016

Inibição de Proteína Pode Interromper Progressão de Câncer de Pulmão



Estudo, com participação de brasileira, sugere nova estratégia no tratamento desse tipo de tumor

 RODRIGO DE OLIVEIRA ANDRADE |Revista FAPESP Edição Online 17:41 3 de agosto de 2016



Um grupo internacional de pesquisadores, com a participação da bióloga Daniela Sanchez Bassères, professora do Instituto de Química da Universidade de São Paulo (IQ-USP), identificou um mecanismo molecular que pode ser importante para o desenvolvimento de um tratamento para o câncer de pulmão de células não pequenas, subtipo de tumor que representa cerca de 85% de todos os casos da doença nesse órgão e mata anualmente cerca de 1 milhão de pessoas no mundo. Eles analisaram amostras de tecido tumoral de 490 indivíduos com esse tipo de câncer e encontraram, na maior parte dos casos, uma baixa expressão (ativação) do fator de transcrição C/EBPα, proteína associada à supressão de tumores, e uma superexpressão da BMI1, proteína oncogênica associada à proliferação celular.
A inibição dessa proteína pode vir a se tornar uma estratégia terapêutica promissora para tratar o câncer de pulmão
A inibição de proteína oncogênica pode vir a se tornar uma estratégia terapêutica promissora para tratar o câncer de pulmão
Em experimentos adicionais com linhagens celulares humanas e em tumores pulmonares gerados em camundongos, os pesquisadores concluíram que esses dois eventos estão geralmente correlacionados: a diminuição ou perda de expressão do C/EBPα está quase sempre ligada ao aumento na ativação da BMI1. Além disso, o uso de estratégias de manipulação genética para reduzir a quantidade da proteína BMI1 impediu o crescimento de tumores pulmonares em camundongos. Esses indícios os levaram a administrar um composto, ainda em fase de testes, em camundongos com câncer de pulmão induzido para verificar seus possíveis efeitos. Chamado PTC-209, o candidato a fármaco conseguiu inibir a expressão da BMI1 e, provavelmente por esse motivo, interrompeu o crescimento do tumor nos animais com baixa expressão do fator de transcrição. “A inibição dessa proteína pode vir a se tornar uma estratégia terapêutica promissora para tratar o câncer de pulmão”, diz Daniela. Os resultados do trabalho, coordenado por Elena Levantini, da Escola Médica de Harvard, foram publicados nesta quarta-feira, 3, na revista Science Translational Medicine.
Há algum tempo sabe-se que o fator de transcrição C/EBPα age na regulação da expressão de genes e no processo de diferenciação celular, além de interromper, quando necessário, a mitose celular. Por isso, essa proteína é considerada uma importante supressora de tumores. O problema, segundo Daniela, é que sua função protetora em geral é anulada em vários tipos de câncer, como leucemia mielóide aguda, tumores de próstata, hepáticos e de pulmão. Apesar de os mecanismos por meio dos quais o C/EBPα parece regular a expressão da BMI1 ainda permanecerem desconhecidos, a ação de um inibidor da ação da proteína oncogênica está sendo avaliada em pacientes com tumores sólidos graves desde o ano passado nos Estados Unidos e no Canadá em um estudo clínico de fase 1.
Artigo científicoYONG, K. J. et alTargeted BMI1 inhibition impairs tumor growth in lung adenocarcinomas with low CEBPα expressionScience Translational Medicine. v. 8, nº 350, p. 1-11. 3 ago 2016.

sábado, 23 de abril de 2016

Estudo Obtém Nova Evidência de Relação entre o Vírus Zyka e Síndrome de Guillain-Barré


Pesquisa avaliou pacientes que tiveram a síndrome na Polinésia Francesa.

País teve surto de Zyka entre outubro de 2013 e abril de 2014.


Um estudo publicado no dia 29 de fevereiro de 2016, encontrou novas evidências de que o vírus da zyka pode estar relacionado a casos de Guillain-Barré. A síndrome afeta o sistema nervoso e pode provocar fraqueza muscular e paralisia – geralmente temporária – dos membros. A possível ligação entre zyka e Guillain-Barré já vinha sendo avaliada por especialistas há algum tempo.

A pesquisa, liderada pelo Instituto Pasteur de Paris e divulgada na revista científica "The Lancet", avaliou amostras de sangue de 42 pessoas diagnosticadas com Guillain-Barré no Centro Hospitalar da Polinésia Francesa (CHPF) durante o surto de zyka que afetou o território do Pacífico Sul entre outubro de 2013 e abril de 2014.

Imagem de microscópio eletrônico mostra o vírus da zyka (pontos pretos) em tecidos humanos: estudo traz novas evidências de que o vírus pode causar Guillain-Barré

Todos os 42 pacientes tiveram amostras de sangue coletadas que passaram por testes sorológicos para verificar a presença de anticorpos contra o vírus da zyka. Os resultados mostraram que 41 pacientes, 98% do total, tiveram zyka.

Enquanto isso, na população geral, a incidência de zyka foi de 36%. O grupo controle, usado para estimar a proporção de casos de zyka na população geral, foi composto por 98 pessoas que se consultaram no CHPF por queixas não relacionadas a zyka ou Guillain-Barré, das quais 35 apresentaram anticorpos que apontavam para a infecção por zyka.

Estudos anteriores já tinham apontado para a ocorrência de aumento de casos da síndrome simultaneamente à ocorrência de surtos de zyka, porém esta foi a primeira vez que exames sorológicos foram feitos para constatar essa ligação. 

"Este é o primeiro estudo a avaliar um grande número de pacientes que desenvolveram a síndrome de Guillain-Barré depois de uma infecção pelo vírus da zyka e a fornecer evidência de que o vírus da zyka pode causar a síndrome de Guillain-Barré", disse o principal autor do estudo, o professor Arnaud Fontanet, do Instituto Pasteur, em Paris. 

O estudo também buscou identificar se um histórico de dengue poderia contribuir para o desenvolvimento de Guillain-Barré nos pacientes, mas não obteve resultados conclusivos sobre essa questão. 
Durante o surto de zyka na Polinésia Francesa, houve cerca de 32 mil casos suspeitos de zyka.


Aumento de casos na América Latina 

Segundo a Organização Mundial da Saúde (OMS), quatro estados do Nordeste - Alagoas, Bahia, Piauí e Rio Grande do Norte - tiveram aumento superior a 100% no número de casos da síndrome de Guillain-Barré em 2015. O aumento total na incidência do problema no país foi de 19% em 2015, em relação a outros anos.

Ainda segundo a OMS, os casos do distúrbio neurológico aumentaram em cinco países: Além do Brasil, também na Colômbia, El Salvador, Suriname e Venezuela.

Aedes aegypti, inseto hematófago, responsável pela transmissão do vírus zyka

Quais são os sintomas da síndrome de Guillain-Barré?
A síndrome de Guillain-Barré - que pode afetar pessoas de qualquer idade, especialmente adultos mais velhos - começa a se manifestar por formigamento nos pés e pernas. A sensação tem caráter ascendente, ou seja, vai subindo para os joelhos, coxas, mãos e braços.

O formigamento e a alteração da sensibilidade dos membros vêm acompanhado de fraqueza nos músculos e paralisia. Os sintomas podem atingir os músculos da face e da respiração, o que faz com que o paciente precise ser tratado em unidades de terapia intensiva (UTI).


Há risco de o paciente ficar com sequelas?
A síndrome de Guillain-Barré é considerada uma doença de prognóstico favorável pelos médicos. Em 85% dos casos, há uma recuperação praticamente completa que pode levar de dois a quatro meses. Em 15% dos casos, pode haver sequelas, desde as mais leves, como fraqueza nos pés ou dormência, até as mais significativas, em que os pacientes podem perder a capacidade de andar.

Quais são as causas da doença?
A síndrome de Guillain-Barré ocorre, na maioria das vezes, algumas semanas após uma infecção por vírus ou bactéria. O que ocorre é que o organismo do paciente desenvolve uma reação imunológica para combater a infecção e destruir os vírus ou bactérias. Mas existem estruturas nos vírus e bactérias que são muito parecidas com a bainha de mielina, estrutura que reveste as células nervosas.

Algumas infecções que já foram associadas ao desenvolvimento de Guillain-Barré são as infecções por citomegalovírus, vírus da gripe, da dengue, da hepatite, além de bactérias como a Campylobacter jejuni.

Considerando o aumento expressivo do número de casos de Guillain-Barré em regiões onde também se constatou a presença do zika vírus, especialistas consideram que existem fortes indícios de correlação.


Como é o tratamento?
A doença pode regredir de maneira espontânea, mas existem dois tratamentos que aceleram a recuperação. Um deles é a plasmaférese, procedimento que lembra a hemodiálise, em que o sangue é filtrado para remover os anticorpos que estão lesando os nervos do paciente. O tratamento exige uma estrutura hospitalar complexa e uma equipe com experiência em hemoterapia.

O outro é a injeção de imunoglobulina humana, que faz com que os anticorpos deixem de atacar os próprios nervos. O tratamento de um único paciente com essa estratégia pode custar entre R$ 30 e 40 mil. Segundo o neurologista Marcondes Cavalcante França Junior, da ABNeuro, os dois tratamentos estão disponíveis no Sistema Único de Saúde (SUS), porém nem todos os hospitais têm a estrutura necessária para aplicá-los.

Além disso, é importante que o paciente fique internado durante a doença porque, caso a paralisia afete os músculos respiratórios, ele precisa ser submetido à ventilação mecânica. Mesmo pacientes com sintomas mais leves devem ser internados, pois a doença pode evoluir rapidamente.






terça-feira, 19 de abril de 2016

Para Entender a Origem da Floresta


Biólogos e geólogos unem esforços para explicar a diversidade biológica da Amazônia e da Mata Atlântica e criam uma nova disciplina, a geogenômica
                                                                                               MARIA GUIMARÃES |Revista FAPESP.  ED. 242 | ABRIL 2016


Por mais que biólogos explorem o chão, as árvores e os corpos d’água, eles ainda parecem longe de estimar e explicar a diversidade biológica das florestas tropicais. Mais do que isso, falta explicar como e quando surgiram montanhas, rios e tudo o que está por baixo da mata. Projetos centrados na Amazônia e na Mata Atlântica agora buscam respostas: biólogos e geólogos vêm trabalhando juntos em busca de decifrar essa história numa disciplina batizada em 2014 como geogenômica pelo geólogo Paul Baker, da Universidade Duke, nos Estados Unidos. Um grande impulso para o campo veio da colaboração entre os programas Biota-FAPESP e Dimensions of Biodiversity, da National Science Foundation (NSF), a principal agência norte-americana de fomento à ciência. “Projetos dessa natureza precisam de uma abordagem participativa desde a elaboração das perguntas”, comenta a botânica Lúcia Lohmann, do Instituto de Biociências da Universidade de São Paulo (IB-USP), que coordena com o ornitólogo norte-americano Joel Cracraft, do Museu Americano de História Natural, o primeiro projeto a concretizar a parceria, com foco na Amazônia.
Ramos prensados e secos são armazenados como registros de espécies de plantas, como esta Pyrostegia venusta
Ramos prensados e secos são armazenados como registros de espécies de plantas, como estaPyrostegia venusta
Para integrar as equipes, foi preciso inicialmente vencer barreiras básicas de comunicação. “Um geólogo apresentava uma palestra e os biólogos ficavam perdidos”, conta Lúcia. E vice-versa. “Na primeira reunião passamos duas horas explicando um único slide aos geólogos”, lembra a bióloga Cristina Miyaki, também do IB-USP e coordenadora de um projeto semelhante, porém na Mata Atlântica. Estabelecido um vocabulário em comum, as trocas começaram a tomar forma. “Agora é óbvio que projetos dessa natureza devem contar com pesquisadores de ambas as áreas desde o início, mas não era essa a visão antes de começarmos”, diz Lúcia.
Outro entrave nada trivial à integração do conhecimento é a escassez de dados. “Precisamos ter todas as filogenias datadas, com bancos de dados georreferenciados para produzir mapas de distribuição antes de poder cruzar com os dados geológicos”, conta Lúcia. Ela e seus colaboradores têm uma expedição para a Amazônia planejada para este ano. “Vamos coletar dados de diferentes organismos para avaliar em que extensão os rios Negro e Branco representam barreiras para a dispersão.”
Grandes rios limitam a distribuição de espécies como Psophia crepitans...
Grandes rios limitam a distribuição
de espécies como 
Psophia crepitans
É fácil imaginar que rios caudalosos limitam a mobilidade dos organismos, mas, quando os biólogos usam o DNA para resgatar informações da história das espécies, nem sempre é o que veem. “Para as plantas, os rios não parecem ser barreiras importantes”, diz Lúcia, especialista na família Bignoniaceae. Já a circulação de primatas pode ser limitada por eles, como mostra o primatólogo brasileiro Jean Philippe Boubli, da Universidade de Salford, na Inglaterra. Ele também é pesquisador do Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia (Inpa), e por isso tem acesso a um acervo importante de amostras de primatas depositadas na instituição. “Temos uma cobertura quase completa de amostras de primatas amazônicos e, com a genômica, conseguiremos investigar o papel dos grandes rios na origem da diversidade do grupo”, planeja. Com uma nova filogenia dos sauás, ou zogue-zogues (Callicebus), publicada em março deste ano na revista Frontiers in Zoology, ele, sua aluna de doutorado Hazel Byrne e colegas indicam divergências profundas que justificam a criação de dois novos gêneros: Cheracebus, para as espécies dos rios Negro e Orinoco, e Plecturocebus, no sul do Amazonas. Callicebus ficaria reservado às espécies da Mata Atlântica. “Eles podem ser a chave de tudo”, diz o pesquisador. É um grupo muito antigo e rico em espécies, por isso é ideal para testar o papel de fatores como os rios e mudanças climáticas na diversificação das espécies. “A colaboração com os geólogos está abrindo nossos olhos para coisas que não sabíamos da Amazônia”, diz.
“O que vem ficando claro é que as hipóteses postuladas nas últimas décadas acabam sendo simplistas para a complexidade da Amazônia”, reflete a bióloga Camila Ribas, do Inpa, que integra o projeto de Lúcia e também o de Baker. “A Teoria dos Refúgios prevê que as espécies atuais teriam se originado durante os ciclos glaciais, dos quais o último aconteceu há cerca de 18 mil anos”, exemplifica. Mas as diferentes regiões da Amazônia parecem ter passado por processos distintos e as espécies respondem de forma diferente às condições locais. As aves, especialidade de Camila, são um bom exemplo de organismos muito heterogêneos na lida com o ambiente: as que conseguem voar longas distâncias, por exemplo, são menos afetadas por barreiras. No outro extremo os jacamins (gêneroPsophia), aves amazônicas que quase não voam, se tornaram o exemplo por excelência de como os grandes rios funcionam como as principais barreiras entre espécies, de acordo com estudo publicado em 2012 na Proceedings of the Royal Society B por Camila e colaboradores.
Mais recentemente, um dos projetos da bióloga do Inpa investiga a fauna de aves típicas de áreas de areia branca na Amazônia, como relatou em artigo publicado este ano na Biotropica, resultado do mestrado de sua aluna Maysa Matos. “São manchas de areia branca no meio de um mar de floresta, com uma vegetação aberta, mais parecida com a da Caatinga ou do Cerrado”, explica Camila. A surpresa é que os animais encontrados em manchas distantes são mais semelhantes do que se imaginaria, mesmo que hoje não consigam atravessar a floresta. Os resultados suscitam uma série de perguntas, como há quanto tempo aquele ambiente existe e se a floresta teria sido mais permeável a esses animais no passado.
Outro dos alunos de Camila, Leandro Moraes, analisou durante o mestrado o papel dos rios Tapajós e Jamanxim, no Pará, em limitar a distribuição de anfíbios e répteis. Os resultados, que serão publicados em breve na revista Journal of Biogeography, mostram que um terço das espécies de anfíbios tem a movimentação restrita pelos rios, proporção que cai para apenas 8% nas cobras e lagartos. O trabalho busca avaliar a importância desses rios na configuração da paisagem e dos hábitats adequados a esses animais, e por isso Camila o considera um exemplo de como o projeto começa a integrar as áreas de conhecimento.
Paisagem mutante
... e Cebus olivaceus...
… e Cebus olivaceus
Nos últimos anos, começou a se sedimentar uma noção de que a drenagem da bacia amazônica evoluiu sobretudo nos últimos 3 milhões de anos (e não 15 milhões, como postulavam as estimativas anteriores), uma escala temporal que parece concordar com o que indicam os dados de animais e plantas. O istmo do Panamá, outra estrutura com grande relevância para a biogeografia porque permitiu migrações entre a América do Sul e as Américas Central e do Norte, também mudou de idade. Um estudo liderado pelo geólogo Camilo Montes, da Universidad de los Andes, Colômbia, publicado na Science em abril de 2015, analisou minerais de origem panamenha encontrados na América do Sul e estimou essa formação entre 13 milhões e 15 milhões de anos atrás – 10 milhões a mais em relação ao que se pensava antes. “A nova datação muda totalmente como se vê a movimentação passada da flora e da fauna na região, nos obriga a reavaliar toda a literatura”, afirma Lúcia Lohmann.
Essa reavaliação tem se revelado muito mais produtiva com a união de especialistas. “Os evolucionistas e biogeógrafos precisam conhecer a história geológica para entender por que as espécies vivem onde vivem, e mesmo como as espécies vieram a existir”, explica Paul Baker, inventor do termo “geogenômica”. Ele tem o plano ambicioso de fazer cinco furos de sondagem próximos a grandes rios amazônicos, com profundidades que podem chegar a 2 quilômetros, para ter acesso contínuo a amostras de sedimentos de várias idades, até cerca de 65 milhões de anos atrás. Em reunião no Inpa no ano passado, ele e colegas do projeto da Amazônia chegaram a um acordo sobre que tipos de dados obtidos com a empreitada poderiam ajudar a reconstituir a história geológica, climática e biótica. Agora o desafio é conseguir o financiamento. “Nosso orçamento só para a perfuração é de US$ 7 milhões”, conta.
O projeto de Baker parte da geologia, enquanto no de Lúcia as perguntas surgem sobretudo da biologia. A geogenômica, entretanto, pretende ser uma via de mão dupla. “A ideia é que geólogos também possam usar dados biológicos para responder a perguntas geológicas”, diz ele. As datas estimadas para o surgimento das espécies dos jacamins de Camila, por exemplo, podem ajudar a estimar a idade dos grandes rios como o Amazonas, o Xingu, o Tapajós e o Madeira, segundo Baker.
“Os dados biológicos fornecem uma ordem de grandeza que permite gerar as hipóteses que podemos testar com as idades absolutas provenientes de datações geocronológicas”, concorda o sedimentólogo Renato Almeida, do Instituto de Geociências (IGc) da USP. Junto com o colega André Sawakuchi, ele investiga a formação dos depósitos sedimentares que compõem a bacia amazônica. “É uma área do tamanho de um continente com uma escassez de dados absurda”, afirma. Reduzir esse desconhecimento não é tarefa que poderá ser realizada dentro do tempo do projeto atual, e a maior parte dos dados que o grupo vem levantando ainda não está publicada. Além de começar a pintar um quadro geográfico do passado, uma missão da equipe é ajudar os biólogos a distinguir quais das hipóteses têm mais fundamento para explicar os padrões biogeográficos.
...mas não de plantas cujas sementes são carregadas pelo vento
…mas não de plantas cujas sementes
são carregadas pelo vento
O trabalho vem mostrando que o soerguimento da cordilheira dos Andes aos poucos empurrou para leste a água de um imenso lago que havia na região e foi formando as drenagens de maior porte em direção ao oceano Atlântico. Uma das técnicas para revelar o passado dos rios é a luminescência opticamente estimulada, que depende da coleta, em tubos de alumínio, de sedimentos dos barrancos que ladeiam os rios. “De volta ao laboratório, conseguimos datar a última vez que o grão de quartzo foi exposto à luz do sol”, explica o geógrafo Fabiano Pupim, pesquisador de pós-doutorado no laboratório de Sawakuchi. O grupo também enxerga uma rica informação na configuração dos sedimentos nesses paredões junto aos rios, que chegam a ter 20 metros de altura. As estruturas internas permitem inferir a escala e o sentido do rio quando aquele sedimento foi depositado, entre outras informações.
Imagens de sonar mostram que o fundo de rios como o Amazonas, outro território desconhecido, tem dunas de até 12 metros de altura. “Precisamos entender como funciona um rio dessas dimensões para inferir como eram os grandes rios do passado”, diz Almeida. Em colaboração com o geólogo Carlos Grohmann, do Instituto de Energia e Ambiente (IEE) da USP, ele também investiga a dinâmica dos rios por meio de séries temporais de imagens de satélite.
A importância é maior do que a função dos rios como barreiras. Os cursos d’água e os sedimentos que vieram dos Andes formaram o mosaico de ambientes que caracterizam a Amazônia, com áreas secas e de alagamento periódico. Sawakuchi, Pupim e equipe (sobretudo os alunos de mestrado Dorília Cunha e Diego Souza) têm investigado a formação dos arquipélagos de Anavilhanas e do tabuleiro do Embaubal, no rio Amazonas, nos últimos 10 mil anos. O surgimento desse tipo de ambiente e dos rios propriamente ditos representa escalas de tempo distintas, cujo significado o geógrafo espera complementar com os dados biológicos.
Em laboratório iluminado apenas com luz vermelha é possível saber há quanto tempo sedimento recebeu a luz solar
Em laboratório iluminado apenas com luz vermelha é possível
saber há quanto tempo sedimento recebeu a luz solar
Clima flutuante 
Mas nem só de água terrestre vivem as florestas. Francisco William da Cruz Júnior, do IGc-USP e um dos coordenadores da parte geológica na geogenômica brasileira, usa espeleotemas (formações de composição carbonática de cavernas), principalmente estalagmites, para inferir o clima do passado. Os dados obtidos por seu grupo de pesquisa indicam que a Era Glacial na América do Sul não era árida como se pensava. “Parte do continente estava seca, mas outras áreas eram úmidas, o que pode ter favorecido até mesmo a expansão das florestas, como na Amazônia peruana e na parte sul da Mata Atlântica”, afirma.
Com base na análise de isótopos de oxigênio contidos no carbonato de cálcio do material das cavernas, ele observa que diferentes partes da Amazônia e regiões adjacentes passaram por processos muito distintos, como fica claro em artigo de que participou, em conjunto com biólogos da equipe, sob a coordenação do colega chinês Hai Cheng e publicado em 2013 na Nature Communications. As datações indicam que, nos últimos 250 mil anos, o clima do oeste da Amazônia se manteve mais estável do que a região a leste, no Pará, com um fortalecimento das chuvas durante os períodos glaciais – entre 100 mil e 20 mil anos atrás. O grupo interpreta essa relativa estabilidade como responsável pela alta biodiversidade encontrada hoje na região, enquanto a parte leste da Amazônia, menos rica em espécies, passou por variações climáticas drásticas que podem ter levado a extinções. “Estamos desafiando um paradigma”, diz Cruz. “A estabilidade climática pode ter sido mais importante do que os refúgios para gerar o padrão de alta diversidade encontrado hoje na floresta amazônica, principalmente junto aos Andes.”
No período glacial o oeste da Amazônia parece ter sido bem úmido, assim como o domínio da Mata Atlântica no Sul e Sudeste brasileiros. Cruz tem indícios de uma faixa climática que une essas duas regiões e tem características opostas à área que inclui o Pará, no leste da Amazônia, e a região Nordeste, que varia em ciclos de cerca de 23 mil anos. “Esse padrão está sendo testado tanto no projeto da Amazônia como no da Mata Atlântica.” Ele defende que essas correspondências possibilitaram a formação de corredores entre os dois biomas, que explicam casos de parentesco maior entre espécies da Amazônia e da Mata Atlântica, em relação a espécies de um mesmo bioma. Cruz postula que em um período no qual se supõe uma alta umidade no leste da Amazônia e no Nordeste do país, as florestas tropicais devem ter se expandido, formando uma ponte de floresta entre os dois biomas. Mais tarde, há indícios de chuvas mais abundantes na região mais próxima ao sopé dos Andes e no Sul e Sudeste brasileiros, também com possibilidade de expansão das florestas até o encontro da Amazônia com a Mata Atlântica. “Estamos atualmente testando quais seriam essas fases.”
Camadas de estalagmite...
Camadas de estalagmite…
Um testemunho dessa dinâmica são as folhas fossilizadas coletadas por Cruz no vale do rio São Francisco, região hoje recoberta por Caatinga. “Elas indicam que a região foi rapidamente coberta por vegetação úmida entre 18 e 15 mil anos atrás”, afirma. Mesmo na atualidade, há uma conexão climática direta entre os dois biomas: no verão, a umidade que viaja desde a Amazônia determina o que acontece na Mata Atlântica, por exemplo. “Não dá para restringir o estudo a um quadro local, nem é interessante”, diz Cruz.
Iniciado um ano depois do projeto da Amazônia, o da Mata Atlântica, coordenado pelas biólogas Cristina Miyaki, da USP, e Ana Carolina Carnaval, da Universidade da Cidade de Nova York, está em um estágio mais inicial da integração das especialidades. “Vários artigos em que estamos trabalhando neste terceiro ano incluem o ângulo ou a hipótese que o time de paleoclimatólogos (ou o de sensoriamento remoto) trouxe para nossa equipe”, diz Ana. Um trabalho com dados genômicos testando hipóteses formuladas por Cruz e outros integrantes da equipe geológica, como a palinologista Marie-Pierre Ledru, do Instituto de Ciências da Evolução em Montpellier, França, está sendo finalizado para publicação. “É legal demais porque a paleoclimatologia indica um caminho que a genômica testa e vê o que confere, o que não confere”, conta. “Depois trazemos a discussão de novo para os paleoclimatólogos, para refinar as ideias.”
...e folhas fossilizadas são indicadores de clima do passado
…e folhas fossilizadas são indicadores de clima do passado
Os resultados estão surgindo e prometem render muitos frutos nos próximos anos, quando o financiamento atual já tiver sido substituído por outros projetos. Firmar a parceria é, parece, a maior conquista. “Estamos começando a delimitar o que ainda não está entendido”, diz Cristina. Seu trabalho sempre envolveu suposições do campo da geologia para entender a diversificação de aves na Mata Atlântica. Mas agora, com o novo aprendizado, vem a sensação de que as análises eram muito superficiais e as interpretações, apesar de serem as melhores possíveis na época, ingênuas.
A geogenômica é um exemplo da melhor ciência moderna. “De certa maneira voltamos à história natural antiga, em que os pesquisadores tinham conhecimento de biologia e de geologia”, brinca Cristina. Mas, com técnicas cada vez mais especializadas, bancos de dados mais e mais gigantescos e um nível crescente de detalhes, a única maneira de se reunir esse conhecimento é a congregação de grandes grupos. Passados os primeiros anos em que cada especialidade continuou a produzir trabalhos semelhantes aos que já faziam antes, de agora em diante devem começar a aparecer os resultados realmente integrados.
Artigos científicosBAKER, P. A. et al. The emerging field of Geogenomics: Constraining geological problems with genetic dataEarth-Science Reviews. v. 135, p. 38-47. ago. 2014.
BYRNE, H. et alPhylogenetic relationships of the New World titi monkeys (Callicebus): First appraisal of taxonomy based on molecular evidenceFrontiers in Zoology. v. 13, n. 10. 1º mar. 2016.
CHENG, H. et al. Climate change patterns in Amazonia and biodiversityNature Communications. v. 4, n. 1.411. 29 jan. 2013.
MATOS, M. V. et alComparative phylogeography of two bird species, Tachyphonus phoenicius (Thraupidae) and Polytmus theresiae (Trochilidae), specialized in Amazonian White Sand VegetationBiotropica. v. 48, n. 1, p. 110-20. jan. 2016.
MORAES, L. J. C. L. et al. The combined influence of riverine barriers and flooding gradients on biogeographical patterns for amphibians and squamates in south-eastern Amazonia. Journal of Biogeography. No prelo.
RIBAS, C. C. et alA palaeobiogeographical model for biotic diversification within Amazonia over the past three million yearsProceedings of the Royal Society B. v. 279, n. 1.729, p. 681-9. 11 jan. 2012.

terça-feira, 5 de abril de 2016

Vírus Zika Provavelmente Chegou ao Brasil em 2013


Agente infeccioso deve ter entrado no país em um único evento, 18 meses antes de os primeiros casos serem registrados


Por RODRIGO DE OLIVEIRA ANDRADE | Edição Online 14:59 24 de março de 2016 



O vírus zika pode ter entrado no Brasil em meados de 2013, quase um ano e meio antes de os primeiros casos começarem a ser registrados no país. Até então, o Ministério da Saúde estimava que o vírus havia aportado em território nacional entre 2014 e 2015, o mesmo período em que se começou a detectar um aumento nos casos de microcefalia — um tipo de malformação congênita em que os bebês nascem com a cabeça menor que o esperado para o tempo de gestação —, sobretudo na região Nordeste. Em um estudo publicado nesta quinta-feira (24/3) na revista Science, um grupo internacional de pesquisadores, do qual participam brasileiros dos institutos Evandro Chagas e Adolfo Lutz e da Fundação Oswaldo Cruz, sugere que o vírus, até pouco tempo atrás considerado inofensivo, entrou no Brasil em único evento. Uma vez aqui, encontrou condições favoráveis para se espalhar rapidamente, segundo os pesquisadores. A disseminação no país possivelmente começou em algum momento entre os meses de maio e dezembro de 2013, período que coincide com a realização de eventos esportivos de grande porte, como a Copa das Confederações, e o aumento no trânsito de pessoas pelo país.
As conclusões baseiam-se em análises de dados genéticos do vírus e epidemiológicos de pessoas infectadas por ele. Ao combiná-los com informações geográficas e temporais, os pesquisadores recuperaram as origens e os possíveis padrões de dispersão do vírus. No estudo, eles extraíram amostras de zika de sete indivíduos de várias regiões do país, todas colhidas em diferentes meses de 2015. Em seguida, sequenciaram o material genético do vírus.
O fato de a maioria das infecções não provocar sintomas pode ter contribuído para que o zika, transmitido pelo mosquito Aedes aegypti, se espalhasse pelo país quase sem ser percebido.



A partir daí, para estimar o período em que o microrganismo entrou no Brasil, os pesquisadores construíram uma árvore filogenética com todos os genomas disponíveis em circulação nas Américas. “Em conjunto com uma técnica chamada de relógio molecular, conseguimos reconstruir no tempo como as relações entre esses genomas se estabeleceram”, explica o virologista Renato Pereira de Souza, do Instituto Adolfo Lutz, em São Paulo, e um dos autores do estudo. Essa técnica, segundo ele, possibilita calcular o momento em que dois vírus próximos divergiram entre si. “Esses dados servem como indicadores do tempo em que existia um ancestral comum entre essas linhagens. Dessa forma, foi possível calcular o momento provável que o zika entrou no país.” O grupo, coordenado pelo biomédico português Nuno Faria, do Departamento de Zoologia da Universidade de Oxford, já havia usado essa mesma técnica em 2014 para identificar o ponto a partir do qual o HIV — vírus causador da Aids — se disseminou na África (ver Pesquisa FAPESP On-line).
O sequenciamento do material genético do zika revelou um genoma com cerca de 10,7 mil nucleotídeos compondo uma fita simples de ácido ribonucleico (RNA) com genes capazes de expressar dez diferentes proteínas. As análises filogenéticas, por sua vez, sugerem que a variedade que circula no Brasil e em outros países da América do Sul é a mesma originária da Polinésia Francesa, que registrou um surto de infecção por zika em novembro de 2013 que se estendeu até meados de 2014. Os resultados reiteram algo que há algum tempo alguns pesquisadores já suspeitavam. O vírus deixou as florestas de Uganda, na África, por volta de 1945, e circulou pelo planeta nas décadas seguintes, passando pela Ásia até chegar à Polinésia Francesa em 2013, de onde alcançou o Brasil (ver Pesquisa FAPESP nº 240).
Antes desse estudo, suspeitava-se de que o zika havia sido introduzido no país por indivíduos infectados, sobretudo da África, que vieram ao Brasil para dois grandes eventos esportivos em 2014: a Copa do Mundo de futebol e uma competição internacional de canoagem, no Rio de Janeiro — este último teve a participação de atletas da Polinésia Francesa. Os resultados apresentados agora pela equipe de Faria, porém, reforçam a ideia de que o vírus zika, na verdade, deve ter entrado no Brasil durante a Copa das Confederações — evento-teste da Copa do Mundo —, realizada entre os dias 15 e 30 de junho de 2013.
Os pesquisadores chegaram a essa conclusão ao confrontar os resultados da análise genética do vírus com informações de voos provenientes de países nos quais houve surtos de infecção por zika entre 2012 e 2014. A partir de fins de 2012, aumentou o número de pessoas vindas desses lugares desembarcando no Brasil: a média era de 3.775 passageiros por mês no início de 2013 e de 5.754 em 2014. “O vírus pode ter permanecido indetectável por cerca de um ano até os primeiros casos começarem a ser reportados, em maio de 2015”, diz Nuno Faria. Ele e Souza sugerem que o fato de a maioria das infecções não provocar sintomas pode ter contribuído para que o zika se espalhasse pelo país quase sem ser percebido. Além dos casos assintomáticos, há outra complicação. Nas vezes em que surgem sintomas estes são muito parecidos com os provocados pelos vírus da dengue e da febre chikungunya, o que pode ter dificultado e até atrasado a identificação dos primeiros casos de zika.
Os dados, segundo Faria, são importantes e “podem servir de base para outros estudos com o objetivo de entender melhor a relação entre o vírus e a microcefalia e outras malformações congênitas”. No entanto, ele diz, ainda são insuficientes para determinar por onde exatamente o vírus entrou no Brasil. O Ministério da Saúde estima que entre 443 mil e 1,3 milhão de brasileiros já podem ter tido zika, sobretudo na Bahia, o estado com maior número de casos registrados. De 2000 a 2014, o ministério registrou a média anual de 164 casos de microcefalia. De outubro de 2015 a fevereiro deste ano, o número de casos confirmados alcançou 583.
Artigos científicos

FARIA, N. R. et alZika virus in the Americas: early epidemiological and genetic findingsScience. v. 351, n. 6280, p. 1-9. 25 mar. 2016.
SALVADOR, F. S. Entry routes for Zika virus in Brazil after 2014 world cup: new possibilitiesTravel Medicine Infectious Disease. fev. 2014.
MUSSO, D. Zika Virus Transmission from French Polynesia to BrazilEmerging Infectious Diseases. out. 2015.