sábado, 19 de maio de 2018

Origem da vida: se, no início, tudo era RNA, como ele se reproduzia?

Cientistas descobrem um jeito de fazer aglomerados de moléculas de RNA (os ribossomos) criarem cópias de si mesmos – e esse pode ter sido um dos primeiros passos da vida na Terra

Por Bruno Vaiano

Superinteressante - Maio, 2018


Você está vivo. Parabéns. É um fato digno de nota. Não só porque você foi um espermatozoide vitorioso em meio aos incontáveis outros que tentaram, sem sucesso, alcançar o óvulo. Mas porque o próprio fato de que a vida surgiu na Terra é ridiculamente improvável.
Os bloquinhos essenciais da vida, as proteínas, são imensas cadeias de bloquinhos menores, compostos químicos chamados aminoácidos (há, ao todo, 22 deles, dos quais 20 bastam para a maior parte dos seres vivos). Uma proteína razoavelmente longa, como o colágeno, contém 1055 aminoácidos. Eles precisam aparecer em uma ordem exata. Qualquer erro na sequência é fatal.
Qual é a chance de uma proteína complexa desse jeito se formar espontaneamente na natureza? Para todos os efeitos, zero. São 1055 posições, cada uma com 20 possíveis ocupantes. A chance de você ganhar três vezes seguidas na Mega-Sena da Virada é bem, bem maior. Mas é óbvio que nem o colágeno nem as outras milhares de proteínas necessárias para seu corpo funcionar são produzidos do nada, em um golpe de sorte. Os seres vivos vêm de fábrica com um manual de instruções, chamado DNA, que contém o passo a passo para produzir tudo que você precisa.
“Legal”, você dirá, “então, quando surgiu a vida, primeiro apareceu o DNA, e o resto veio por tabela?” Bem, não. Acontece que o DNA guarda informação e só. Ele é péssimo em fazer todo o resto. É só um pen drive. O que torna tudo possível é o que vem no meio: RNA. O RNA, você deve se lembrar de seus tempos de escola, é a molécula que coleta informações presentes no DNA e as transforma em proteínas. É o elo entre a entidade que guarda o código da vida e a que de fato põe a vida para funcionar.
Um dos critérios para definir uma entidade viva é que ela seja capaz de se reproduzir. De criar cópias de si mesma. O que faz uma pedra pertencer ao reino das coisas minerais é que a dita cuja não pode, em hipótese alguma, ter filhotes. O momento em que a vida surgiu na Terra, há pouco mais de 4 bilhões de anos, foi o momento em que, pela primeira vez, uma molécula conseguiu criar uma cópia de si própria.

O problema é que nem o DNA nem as proteínas são bons nessa coisa de espalhar cópias por aí. Um contém informação, mas não age. O outro age, mas não contém informação. O RNA, por outro lado, faz um pouco de cada coisa. Ele tem bases nitrogenadas que armazenam dados (C, G, A e U), mas também é capaz de se enrolar de forma parecida com uma enzima (ou seja, uma proteína) – os famosos ribossomos.

Por causa dessas e outras, a hipótese de que a vida na Terra tenha começado com RNA é popular – tem até um artigo na Wikipedia. Mas não é perfeita: quando cientistas tentam fazer uma molécula de RNA se reproduzir em laboratório, tropeçam em um empecilho. De maneira bem simplificada, os ribossomos só conseguem criar cópias de moléculas de RNA retas. Se elas estivessem dobradas, não dá. Acontece que um ribossomo é justamente RNA dobrado. Em outras palavras, não dava para o ribossomo se reproduzir. Ele não conseguia fazer uma cópia de si próprio.  

Agora, um passo promissor foi dado. Em um artigo científico publicado hoje, pesquisadores do laboratório de biologia molecular MRC, no Reino Unido, revelaram um jeito de fazer um RNA já dobrado, em forma de enzima, criar cópias de si próprio. O truque foi fazer o RNA sintetizar novas moléculas copiando três bases nitrogenadas de cada vez, em vez de uma só (“AUG” em vez de “A”, “U” e “G”, um de cada vez). Como três bases são mais estáveis que uma só, o processo corre sem percalços.

Isso não ocorre na natureza hoje em dia, mas nada garante que não tenha ocorrido há 4 bilhões de anos. Apesar dos resultados promissores, ainda é preciso calma: embora esse processo seja um forte candidato a explicar o mundo RNA, o modelo precisa ser aperfeiçoado.

“Nosso ribossomo ainda precisa de muita ajuda para se replicar”, explicou em comunicado Philipp Holliger, líder da pesquisa. “Além disso, o sistema é puro. O próximo passo é integrá-lo a um substrato mais complexo, que imite a sopa primordial [as condições químicas da Terra no começo de sua existência]. Provavelmente o ambiente era rico do ponto de vista químico, contendo lipídios e peptídeos simples que poderiam ter interagido com o RNA.”

Ainda há um longo caminho pela frente se quisermos explicar a origem da vida. Mas a resposta, ao que tudo indica, mora na molécula que mais te ferrou nas provas do ensino médio. Viva o RNA.

    Pesquisadores identificam origem de fungo assassino de anfíbios


Responsável pela morte de centenas de milhares de sapos no mundo, o Batrachochytrium dendrobatidis originou-se no leste da Ásia há cerca de 100 anos
Um fungo letal, responsável pela morte de milhares de sapos no mundo, originou-se no leste da Ásia há cerca de 100 anos. A conclusão é de um grupo internacional de pesquisadores, entre eles o zoólogo brasileiro Luís Felipe Toledo, do Instituto de Biologia da Universidade Estadual de Campinas (IB-Unicamp). Em um estudo que foi capa da edição da última semana da revista Science, eles coletaram, sequenciaram e analisaram centenas de linhagens espalhadas pelo mundo do fungo Batrachochytrium dendrobatidis, principal causador de uma doença infecciosa chamada quitridiomicose, uma das piores doenças da vida selvagem.
A rã-de-vidro (Vitreorana eurygnatha) encontra-se ameaçada
de extinção devido à ação do fungo 
Batrachochytrium dendrobatidis
Batrachochytrium dendrobatidis, ou Bd, aloja-se na pele dos anfíbios, altera o equilíbrio de eletrólitos dos músculos, interferindo em sua troca gasosa com o ambiente e levando algumas espécies a morrer de colapso cardíaco. Nas últimas três décadas, o Bd matou tantos sapos na Austrália, Europa e nas Américas que alguns pesquisadores chegaram a cogitar uma iminente extinção em massa desses animais — algumas espécies desapareceram ou foram localmente extintas. Apesar dos estragos causados, nunca se soube onde e quando esse fungo surgiu ou como se espalhou pelo mundo.
Ao longo dos últimos 10 anos, um grupo internacional de pesquisadores, coordenado pelo epidemiologista inglês Simon O’Hanlon, do Imperial College de Londres, no Reino Unido, trabalhou na coleta de dados genéticos do Bd em parceria com outras 38 instituições de pesquisa espalhadas pelo mundo. Após reunir todo o material, eles isolaram e sequenciaram o genoma de 234 cepas do Bd e, com isso, conseguiram rastrear a origem do fungo e estimar como e quando ele começou a se disseminar para outras regiões.
A rã-touro (Lithobates catesbeianus) é uma das poucas
 espécies de anfíbios resistente ao 
Bd
Verificaram que o lugar com a maior diversidade de linhagens de Bd foi a Coreia do Sul, o que sugere que o fungo teria surgido primeiro na península coreana e, de lá, se espalhado pelo mundo, provavelmente no início do século XX, e não há 25 mil anos, como sugerido anteriormente. “Até então, várias regiões do mundo tinham sido apontadas como possíveis pontos de origem do fungo”, comenta Toledo, que liderou o laboratório brasileiro responsável por isolar e sequenciar as cepas de duas linhagens do fungo, a Bd-Asia-2/Brazil e a Bd-GPL. A primeira é considerada uma das mais diversas e relacionada à origem do fungo, enquanto a segunda é uma das mais virulentas.
Ele explica que a velocidade com que o fungo se disseminou pelo mundo coincide com a ascensão do comércio global de carne e pele de rã a partir da década de 1930. Essa prática, no entanto, foi abandonada tempos depois diante da falta de interesse pelo consumo desses animais. Segundo ele, o comércio global tornou-se desastroso para os sapos nativos que encontraram o fungo mortal pela primeira vez.
De acordo com Toledo, a concentração de diversidade de fungos na Ásia significa que a região pode ser considerada uma área crítica para o surgimento de outros patógenos, como é o caso do fungo Batrachochytrium salamandrivorans, que infecta as salamandras. “Sabendo a origem do Bd, podemos estudar melhor os genes dos anfíbios daquela região para tentar identificar algum tipo de resistência adquirida, como uma maior taxa de expressão de genes de resistência”, explica o zoólogo.
Há algum tempo se sabe que algumas espécies de sapos são resistentes ao Batrachochytrium dendrobatidis. As rãs-touro (Lithobates catesbeianus) representam a espécie mais citada como exemplo de convivência pacífica com o microrganismo. Essas rãs também ganharam espaço no cardápio de muitos restaurantes do mundo
Perereca-verde-de-olhos-vermelhos (Aplastodiscus caviculus) com Bd na Mata Atlântica

Elas foram trazidas para Brasil em meados da década de 1930, a partir dos Estados Unidos, para criações comerciais destinadas, sobretudo, à produção de carne. A rã-touro ainda é mais encontrada em ranários comerciais, mas já se incorporou ao ambiente local. Hoje é encontrada em muitas regiões do país, alimentando-se de pequenos invertebrados e até mesmo de aves, pequenos mamíferos e outros anfíbios, ajudando a disseminar para demais espécies o fundo ao qual é resistente.
Com base nos resultados obtidos, os pesquisadores agora pretendem concentrar sua análise no leste da Ásia e do Brasil para que possam compreender melhor a origem e evolução do patógeno e os possíveis desdobramentos quanto à virulência das diferentes linhagens. “Já sabemos que existem híbridos no Brasil, mas temos muito poucos dados sobre sua patogenicidade e virulência”, explica Toledo.
“Também pretendemos conversar com as agências nacionais, como o Ibama [Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis] e o ICMBio [Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade]”, diz. “O objetivo é discutir políticas públicas de contenção da disseminação da quitridiomicose no Brasil.”
Projeto
O fungo quitrídio no Brasil: da sua origem às suas consequências (nº 16/25358-3); Modalidade Projeto Temático; Pesquisador responsável Luís Felipe de Toledo Ramos Pereira (Unicamp); Investimento R$ 721.055,89 (FAPESP).

Artigo científico
O’HANLON, S. J. et alRecent Asian origin of chytrid fungi causing global amphibian declinesScience v. 360, n. 6389, p. 621-27. 11 mai. 2018.







quarta-feira, 2 de maio de 2018


Boa parte do shoyu produzido no Brasil tem alto teor de milho

Amostras analisadas tinham, em média, menos de 20% de soja em sua composição



Por Rodrigo de Oliveira Andrade - Revista FAPESP| Edição Online 12:14 24 de abril de 2018


No mundo todo, o principal componente do shoyu, condimento fundamental da culinária asiática, é a soja. No Brasil, é diferente. Aqui, muitas empresas substituem, ou trocam, a soja pelo milho. A conclusão é de um grupo de pesquisadores do Centro de Energia Nuclear na Agricultura (Cena) e da Escola Superior de Agricultura Luiz de Queiroz (Esalq), ambos da Universidade de São Paulo (USP), que analisou a composição química de 70 amostras de shoyu de marcas comercializadas no país.
Em países como Japão, China e Coreia do Sul, o molho shoyu é feito de soja com proporções pequenas de outros cereais como trigo ou cevada. “O que a indústria brasileira oferece ao consumidor não é shoyu propriamente dito, é um molho escuro e salgado elaborado a partir de milho, que deveria ter outro nome”, destaca a bióloga Maristela Morais, uma das coordenadoras do grupo, ao lado do engenheiro agrônomo Luiz Antonio Martinelli. Ambos são do Cena-USP.
Para identificar os ingredientes usados na elaboração do molho, os pesquisadores mediram a proporção de duas variantes do elemento químico carbono encontradas nas amostras. Soja, arroz e trigo são plantas que absorvem o gás carbônico da atmosfera e, sob a luz solar, realizam reações químicas que geram moléculas de açúcar contendo três átomos de carbono – é o chamado sistema de fotossíntese C3. Já o milho é uma planta de via fotossintética C4, por produzir açúcares com quatro carbonos. Esses açúcares continuam a existir nos alimentos, mesmo depois de os grãos serem processados, e funcionam como uma assinatura química de sua origem.
Ao analisar as amostras, os pesquisadores verificaram que o milho era o principal componente do shoyu comercializado no Brasil (Journal of Food Composition and Analysis, 3 de abril). Em média, as amostras analisadas tinham menos de 20% de soja em sua composição. Acredita-se que o uso de milho na produção do condimento esteja relacionado ao preço do grão, consideravelmente mais barato que o da soja. Entre 2007 e 2017, o preço médio da soja foi o dobro do preço médio do milho no Brasil. “O uso de milho na produção de shoyu não é ilegal, já que a legislação brasileira não especifica qual deve ser a proporção de cereais usados na sua fabricação”, afirma Maristela.
Artigo científico

MORAIS, M.C. et alStable carbon isotopic composition indicates large presence of maize in Brazilian soy sauces (shoyu). Journal of Food Composition and Analysis. v. 70, p. 18-21. abr. 2018.